terça-feira, abril 25, 2006

Onde é que eu estava no 25 de Abril de 74?........Lá!

A história é mais ou menos conhecida pelos amigos e é pelo menos um óptimo modo de voltar para mim as atenções num convívio social.
Estava lá, no Largo do Carmo, com sete anos.

A minha escola, ficava defronte ao Quartel do Carmo que se colava ao mítico Convento do Carmo, e a minha mãe trabalhava no liceu ao lado do mesmo convento.
De manhãzinha, já com um indistinto cheiro a dia estranho no ar, comparecemos pontuais na Escola Primária nº( já não me lembro).

Depois das ruas quase vazias deparámo-nos com a escola vazia de gente pequena e do seu som característico. Em seu lugar, da cozinha, chegou-me claro o comunicado do movimento das forças armadas, pela voz que ficou na história. Saiu-nos ao caminho uma directora nervosa e perplexa: - Então não sabem o que se está a passar? A sra, esposa de um militar?
A minha mãe sentiu-se por momentos, apanhada em falta (será que não tinha estudado a matéria certa? Algo lhe passara ao lado e ela não fazia a mínima ideia.)
- Um golpe de estado! Estão sempre a repetir na rádio… Os militares estão a tomar o poder, estão a avisar para todos se manterem em casa. Não há aulas, não está cá ninguém. Vão p’ra casa, vão para casa…
Pelo rosto da minha mãe pude ver que a situação era grave, coisa nunca vista e ouvida durante toda a sua vida. Agarrou forte a minha mão e saiu disparada para a rua, num tumulto de emoções. Adivinhei-o então, e sei-o desde há muito, desde que se pode falar de tudo, apenas algumas horas depois.

Depois, foi tudo um pouco confuso. Enquanto algumas pessoas se acercavam do local, nós saíamos em passo rápido em direcção à estação de comboios do Rossio, rápido em direcção a casa, rápido em direcção à protecção.

A esta altura já o chefe do governo tinha buscado refúgio dentro do Quartel do Carmo. Passámos-lhe defronte e nada nos pareceu diferente, nada nos avisou da história a fazer-se, ali e então. Como de costume olhei as sentinelas (as loirinhas provocantes, como era costume chamarem-lhes), que com olhar vítreo, mais alto que o meu nível, ali se mantiveram até…, não sei…

De mãos dadas descemos a íngreme calçada do Carmo enquanto provavelmente do lado inverso, Salgueiro Maia subia de chaimite até à sua "pacífica" missão.

Quando chegamos a casa, ficámos a saber que o meu pai (militar) estava fechado no seu quartel incomunicável. Aliás como todos os militares do país de prevenção! Ficámos as duas em casa durante 2 ou 3 dias sem saber absolutamente nada dele. Valeu-nos termos sido pseudo-adoptadas e apaparicadas pelos vizinhos de baixo, com quem vivemos as longas horas da espera de olhos presos no televisor.
Nunca tinha visto tanta cor num televisor a preto e branco, vi os cravos vermelhos, as floristas do rossio, que quando por lá passava me ofereciam as flores de pé curto, desdobraram-se em cravos que pareciam terem-se multiplicado como maná.
Vi cor nos uniformes verdes e nos jovens que vestiam as psicadélicas roupas anos setenta.

Depois disto, guardo dois momentos mágicos. Os relatos do meu pai, quando voltou a casa:
Tinha durante todo o processo estado em comunicação com os quartéis e militares de todo o país, ouvido as rendições, ou a adesão à revolução dos quartéis mais próximos do regime, que um a um, “foram chegando à festa”.
E a observação em directo na R.T.P. da abertura das grades da prisão de Caxias com os presos políticos a sair com sorrisos e depois em ombros pela multidão de familiares e amigos de luta.

Durante aqueles dias e meses, ouvi e aprendi muita coisa que ficaram comigo para sempre, até hoje e por isso a necessidade de o partilhar hoje.

quarta-feira, abril 19, 2006

No tempo em que eu brincava

Não sei se gostava de voltar atrás à infância… de viver de novo a angustia, dos vestidos rasgados em brincadeiras, quando por fim voltava a casa.
Do correr e do saltar livre, na relva da Alameda da Fonte Luminosa, sinto falta.
Como sinto falta dos amigos de brincadeiras, que ficaram para trás no quotidiano da minha diáspora.
Sinto fantasticamente, a falta dos amigos que não puderam fazer-me companhia nessas odisseias de algumas horas, por ainda não fazerem parte desses filmes.
Como seriam as nossas brincadeiras, princesa guerreira? como seria viver aquele Abril de ingénuos olhos arregalados e emocionadas com o calor das nossas palavras, reflexões, ideais e baladas de intervenção, cantadas a plenos pulmões.
Gaivotas, paz e pão, vampiros de estimação…
Praças com estátuas de febre a arder…
Sim, gostava de voltar atrás e de te levar a viver, mão na mão, aquele tempo…

TRILOGIA DA ÁGUA (III) Mar

Mar…
Oceano…
Imensidão de líquido amniótico onde mergulho sempre, de volta à origem,
ao conforto do útero, do envolvimento, do silêncio aquoso.
Útero eterno de criaturas várias, acolhedor para aqueles que como eu ali voltam periodicamente na busca da renovação, da limpeza interior, da aceitação incondicional, da massagem primordial.
Não te vás. Não te percas. Não nos deixes perder-te, perder-mo-nos.
Nós Atlantes expulsos, que chorando o parto indesejado, te inundámos de lágrimas e sal, não o suportaríamos, não sobreviveríamos.

domingo, abril 09, 2006

TRILOGIA DA ÁGUA (II) Lágrimas


Chove mansinho dentro do meu peito.
Miudinho e constante dos dias iguais.
Esta chuva, por vezes sem aviso, adensa-se e violenta cai sem benevolência.
Cada gota deixa uma marca, uma amolgadela, no meu coração.
E assim se vai formando um oceano de angustia dentro do meu peito.
Às vezes tenho sorte, e com a desculpa de qualquer coisa banal,
Abrem-se sorrateiramente as torneiras da alma e lágrimas saem, sem pedir licença.
Atropelam-se, na hora da saída, como meninos de escola.
Saem salgadas, de impurezas jazentes.
Saem doces de libertação.

TRILOGIA DA ÁGUA (I ) Suor


O teu suor tem o doce sabor da terra molhada e do homem que a trabalhou.
Tem o salgado dos oceanos que curte a pele do pescador.
Tem o cheiro que me fascina, que me leva para ti como perdigueiro em acção.
Nariz percorrendo os milímetros da tua pele, farejando o teu dia, a tua essência.
A língua batedora implacável, segue-lhe os passos, deambulam ambos por espaços, cavidades e saliências que conhecem mas querem confirmar que lá estão, os teus recantos mais íntimos que são só meus por agora.
Marcam os espaços que lhes serviram para consumo mais demorado. A água que eras tu e que se esfumou deixado apenas a essência, sabe a sangue. Sabe ao corpo que tu és. Sabe à alma que se funde na minha quando partilhamos este momento.

quinta-feira, abril 06, 2006

Geisha













Acontece que por solicitação, li com expectativa o badalado “Memórias de uma gueixa” ( não vi o filme, isso fica para outras impressões).
A narrativa, leve e acessível, acabou por se revelar plana.
O desvendar da “fabricação” e quotidiano de uma geisha, acaba por passar para o relato romanceado da vida de uma mulher, (supostamente uma das melhores geishas do seu tempo), a par com o da condição feminina no Japão da 1ª metade do séc. XX.
Se supostamente deveria impressionar esteticamente e comover, (como estou segura o filme o fará…), limita-se a desfiar acontecimentos de uma classe de trabalhadoras que se sujeitam a sacrifícios na aprendizagem do seu “metier”, e depois à rotina da sua “performance”, não o fizemos sempre todas nós?
Esta mulher como as outras, (como nós) ama, sobrevive, está só ou se acreditarem em milagres obtêm da vida o que sonha.
Nas palavras corridas do tempo a passar o meu mito ruiu. Ser geisha é ser mulher, ser uma trabalhadora, um pilar de uma certa economia. A sedução fica para as imagens estáticas (ou eventualmente “in motion pictures”).

quarta-feira, abril 05, 2006

Gueixa

Não sei de onde, ou quando, surgiu a minha fantasia recorrente de ser uma gueixa. Reporto talvez, àquele período da adolescência em que se sonha ser admirada e também original, exótica e distante…
Obviamente que esta minha fantasia me dava a mim o controlo sobre as situações e….os homens. Objectivo não só de adolescente mas pulsão de mulher.
Este processo foi-se desenvolvendo a par com a minha admiração pela estética japonesa, ao conjugar o minimalismo plástico nos espaços e formas e eloquência da cor e dos desenhos.
A esta cena, acresce ainda o manancial poético dos rituais seculares e a teatralização de comportamentos e movimento em ritmos tão distantes dos ocidentais.
Num canto obscuro da minha mente, larguei todos os senãos conhecidos ao longo dos tempos, afinal, “senãos” não cabem em fantasias, definitivamente.

3- Armário.


Tinha tempo. Tinha todo o tempo. Ocupou-se consigo.
Banho de imersão demorado, pequeno luxo de quem não tem horários ou ninguém à espera. Rodeou-se de cremes e cheiros de tranquilidade e segurança. Estava somente a fazer aquilo que sempre prometia a si própria, mas que os finais atribulados dos dias iguais não permitem. Nenhumas segundas intenções…

Escolheu roupa e maquilhagem com preocupação de projectar leveza e despreocupação.
“Just in case” protegeu a retaguarda do resto das horas do dia. Não rejeitou vários programas sobrepostos.

Sabia que ele não iria aparecer. Apesar de desta vez ter dito que sim, que apesar de ocupado iria aparecer. Quis acreditar que também ele tinha urgência dela, tinha-lho afirmado por várias vezes.
Saiu para a rua cumprindo contra relógio preparativos, que nada tinha de específico para aquelas horas.
Somente não tinha em casa nenhum chá de jeito, e ele gostava de chá, aliás ela gostava de chá! Escolheu três, o clássico (e very british) “earl grey”, o super hip chá branco e finalmente um oriental.

Muito cedo tinha abandonado a ideia de uma encenação oriental, consigo no papel de gueixa.
Era demasiado perfeccionista para ignorar a falta de acessórios que considerava essenciais, tolice quando a mania da perfeição se intromete nas nossas fantasias!
Contudo ele não viria portanto….soltou-se ao sabor do imprevisto.
Deixou o tempo correr sem recorrer muito ao relógio, tudo dentro dos timings.
Só faltava um sinal, um toque, só faltava…Ele não veio! (Mas mandou mensagem a avisar!).

2- Esqueleto....


Tinha-lhe aparecido de rompante, naquela altura em que somos permeáveis a eles, e tinha criado um espaço nada corpóreo, mas demasiado físico/mental, se é que isto se pode entender.
Resumindo: tinha encantado como era seu hábito, se calhar por razões outras que não aquelas que ele considerava as suas armas demolidoras.

Não trouxera nada para oferecer, mas cativava pelas suas contradições, pela sua fragilidade e sensibilidade, sempre desimuladas numa divertida e alegre capa de D. Juan,
que fazia estragos à esquerda e à direita.

Para ela, que tinha a pretensão de o “topar à légua”, que o via de igual para igual, que quase invejava não poder ter sido a sua versão feminina, o fascínio que exercera não fora menor… fora mais denso.
Queria-o como uma fêmea quer um parceiro, até à satisfação.
Queria-o como um homem quer um amigo, como um igual, como um aliado.
Queria-o pela sua mente, pelo seu espírito, pela sua energia positiva, pelo seu humor, pela sua natureza desarmante, (recordava-se agora que ela própria era apelidada de desarmante pelos amigos...coincidência?).
Queria-o, mas só por momentos! Sabia-o desde o início.
Momentos daqueles em que as bolas se tocam explosivamente numa mesa de bilhar, para depois partirem à procura do seu buraco ou de outra bola que por ali ande.
Sabia que viviam filmes diferentes, comunicado apenas pelos meios incorporais da moda.

Resumindo, queria livrar-se desse fantasma que não fazia nada por si, (não sei se é suposto os fantasmas fazerem alguma coisa por nós …) da única maneira que sabia: consumindo-o, desmistificando-o, reduzindo-o à mera condição de esqueleto no armário, (segundo ela bem mais fácil de lidar…, nem sequer faz Buuuu!, quando damos com ele.)
Como todos os fantasmas era fugidio, não por timidez mas por sobrevivência por ser bem relacionado, por não se dar à maçada, ou seria um pouco de medo de se ver tão radiografado nos olhos dela? A hipótese de ela não passar de um recorte de uma notícia do século passado, também não podia ser formalmente descartada.

Ela tinha ignorado vezes suficientes, no passado, o incómodo que ele lhe causava quando aparecia, sempre imaterial, fazendo gracinhas e chamando a sua atenção.
Agora decidira encostá-lo à parede (fraca estratégia!), levantar-lhe o lençol e ver como era, afinal ela queria conhecer mais do que ele se permitia revelar.
Fez-lhe um ultimato e ele disse que sim, que iria. (já o tinha dito outras vezes) ela forçou-se a acreditar mas, como das outras vezes… nunca o levou muito a sério.

terça-feira, abril 04, 2006

1- Fantasma...


Rodou o anel no dedo e ajeitou o cabelo num gesto de contida expectativa, fora assim todo o dia.
Funcionava com um objectivo que persistia em camuflar nos gestos e rituais mais rotineiros. O dia parecia ajudar à energia colocada nas tarefas auto impostas. O pão foi comprado cedo, com alegria, mesmo significando ter de abandonar o quente dos lençóis, afinal tinha de se alimentar, e nem o longo olhar com o qual percorreu todas as delícias gastronómicas ali expostas, perspectivando uma aquisição posterior durou mais que breves segundos.
A cama fora feita de lavado porque os lençóis eram demasiados quentes e enrolavam-se de cada vez se virava de noite, teve que ser!

Tinha tempo. Tinha todo o tempo. Estava por sua conta nestes dias que roubara à sua vida quotidiana, para oferecer somente a si. Tinha voltado às origens. Num misto de procura de silêncio, de pessoas, sítios e vivências, que escolhera abandonar, talvez demasiado cedo, mas que nunca se permitiu lamentar.

Agora estava ali, em retiro, muito flexível é certo, mas que tinha objectivos a cumprir. Aquela procura dentro de si implicava não só observar-se, como observar cada detalhe à sua volta e ainda fazer uma arrumação nos fantasmas que povoavam o seu armário.
Não sabia (ou preferia ignorar) quanto, da sua energia e dos seus objectivos colocava no confronto com um fantasma em particular. Um fantasma tão imaterial na sua vida quanto presente na sua mente.