quarta-feira, junho 21, 2006

ADEUS

Quantas vezes já sentimos que o “poeta” nos “tirou as palavras da boca”…
Quantas nos vimos retratados pelo letrista de uma melodia mais dolente…
Nunca tanto como aqui…
Tanto de querer ler de voz alta,

de querer repetir com entoação as dores do poeta,
que também são as minhas.
Ele, eu…
Há muito tempo atrás...agora, sempre!









Adeus

Já gastámos as palavras pela rua,
meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de a apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das
esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não
encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para
dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem
minhas:
quanto mais te dava mais tinha
para te dar.

Às vezes tu dizias: os teus olhos
são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado todas as coisas
eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos
segredos,
era no tempo em que o teu corpo
era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente
nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão
gastas.

Adeus.


“Os Amantes sem dinheiro” (1950)
Eugénio de Andrade




7 comentários:

Medeia disse...

Minha linda, gosto tanto deste «Adeus»...
Já o dediquei noutras eras...
É que o Eugénio tira-nos mesmo as palavras da boca!

Medeia disse...

Voltei só para te contar isto: em tempos, frequentava um local nocturno que tinha escrito este poema numa porta da casa de banho (por dentro, escrito à mão com uma caneta de feltro).
Lembrava-me sempre de alguém por quem procurava todas as noites, alguém que queria reconhecer nos rostos dos que passavam.
Nesses momentos, apetecia-me imenso rasgar do meu livro de poemas a página deste «Adeus» para me libertar desse desassossego...
Não rasguei. Mas também não esqueci aqueles olhos que, não tendo essa cor, sempre foram como «peixes verdes» até ao dia em que me pareceu estar tudo gasto, dentro das palavras, dentro de mim.

Anónimo disse...

Syl, Bonito, muito bonito estas palavras do Eugenio (os teus sentimentos?). Gostei de passar. Bjs

syl disse...

Meus queridos, voltem para ver o que fizeram os meus alunos com este "Adeus". Pobres e sonhadores adolescentes que aturaram a minha paixão por ele e o trabalharam com a sua terna arte. Aguardem...

Anónimo disse...

Só de olhar para esses olhos ficamos sem palavras. Essas as tais palavras. As que deveriam saír e ficam estupidamente entupidas num qualquer canal dentro deste corpo.
Mas de palavras sabem outros, e essas deixo-tas aqui.
Com um beijo do
JP


"Como é que se esquece alguém que se ama? Como é que se esquece alguém que nos faz falta e que nos custa mais lembrar que viver? Quando alguém se vai embora de repente como é que se faz para ficar? Quando alguém morre, quando alguém se separa - como é que se faz quando a pessoa de quem se precisa já lá não está?
Sim, como se faz? Como se esquece?

Devagar. É preciso esquecer devagar. Se uma pessoa tenta esquecer-se de repente, a outra pode ficar-lhe para sempre.

Dizem-nos, para esquecer, para ocupar a cabeça, para trabalhar mais, para distrair a vista, para nos divertirmos mais, mas quanto mais conseguimos fugir, mais temos mais tarde de enfrentar. Fica tudo à nossa espera. Acumula-se-nos tudo na alma, fica tudo desarrumado.

O esquecimento não tem arte. ... Para esquecer é preciso deixar correr o coração, de lembrança em lembrança, na esperança de ele se cansar.

Mas como esquecer? Como deixar acabar aquela dor? É preciso paciência. É preciso sofrer. É preciso aguentar.
Sofrer é respeitar o tamanho que teve um amor. No meio de remoinhos de erros que nos resolve as entranhas de raiva, do ressentimento, do rancor - temos de encontrar a raiz daquela paixão, a razão original daquele amor.
..."

Miguel Esteves Cardoso, in Último Volume - Como Esquecer

trutasalmonada disse...
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trutasalmonada disse...

adeus...palavra tão difícil e também tão tristemente inevitável...adeus...palavra tão carregada de memórias e de sonhos por concretizar...adeus...palavra que (com)promete o futuro...